domingo, 2 de setembro de 2012

Uma viagem ao nascedouro da música de Elvis Presley, no sul dos Estados Unidos, confirma a vitalidade de sua lenda. Passados 35 anos de sua mort



Robert Sullivan, 85 anos, caminha a passos pesa­dos pelo auditório muni­cipal de Shreveport, ci­dade do estado da Loui-siana, no sul dos Estados Unidos. Foi ali, em 1948, que ele iniciou a carreira de técnico de áudio, no progra­ma de rádio Loumana Hayride, que dis­putava a audiência dos amantes do country com o Grana Ole Opry. E foi ali que ele testemunhou o nascimento de uma lenda—talvez a maior delas — do rock: em outubro de 1954, fazia sua estreia no Hayride um jovem de cabelos castanhos (que três anos depois seriam tingidos de preto) e um sorriso de lado que derretia as mulheres. Era Elvis Presley. Ele vi­nha de uma experiência infeliz no Grana Ole Opry. cujo público era tradicional demais para sua música (do episódio, aliás, ficou uma dessas lendas de rejei­ção prematura que fazem parte do fol­clore de toda grande estrela: um executi­vo da rádio de Nashville teria dito ao iniciante que ele deveria largar a música e voltar a dirigir caminhões). O jovem roqueiro levava dez horas para se loco­mover de Memphis, no Tennessee, onde morava, até Shreveport, onde fazia duas entradas no programa. "Em uma dessas noites, ele mal acabou de tocar e já saiu para viajar mais seis horas até Oklaho-ma, onde tinha outro show marcado", conta Sullivan. Em uma conversa com o técnico, Elvis justificou todo esse esfor­ço em termos que, a distância, soam ab­surdos: "Tenho de fazer isso enquanto sou jovem, porque daqui a um ano nin­guém mais vai se lembrar de mim". No dia 16 de agosto, completam-se 35 anos da morte de Elvis Presley, e ele continua lembrado como nunca. Mesmo depois dos Beatles, de Michael Jackson e de Madonna, o cantor ainda detém o posto de maior ganhador de discos de ouro e platina de todos os tempos — são 131 ao todo. Ele começou a gravar em um pe­ríodo no qual a aferição de números era nebulosa, mas estima-se que tenha ven­dido mais de l bilhão de discos. Elvis deixou sua presença marcada a fogo no imaginário pop. Sem nunca ter excursio-nado fora de seu país (descontados aí uns poucos shows no vizinho Canadá), tomou-se uma figura global. Sua voz, sua postura de palco, sua indumentária são imediatamente reconhecíveis, e ele é o astro mais parodiado de todos os tempos. No Brasil, neste ano, dois eventos vão celebrar a me­mória daquele que foi aclamado o Rei do Rock. A exposição El-vis Experience incluirá 500 arti­gos pessoais do cantor, entre os l quais o famoso e vistoso traje American Eagle, que ele usou no especial Aloha from Hawaii, de 1973. A abertura da mostra, em 5 « de setembro, no Shopping Eldora­do, em São Paulo, deve contar com 1 a presença da viúva do cantor. Pris-cilla Presley. Em outubro, São Paulo recebe Elvis Presley in Concert, da TCB Band, que tocou com Elvis de 1969 até sua morte — e vem acom­panhada de projeções em vídeo do cantor. As três noites do show estão com lotação quase esgotada. Mostra e show confirmam o status de objeto de culto que Elvis conquistou antes de qualquer outro astro do rock. VEJA vi­sitou a paisagem original do mito: as cidades de Tupelo, Memphis, Nashville e Nova Orleans, locais decisivos para a carreira e para a formação musical de Elvis. O resultado está na reportagem que o leitor tem em mãos — e que se expande tanto na edição de VEJA para iPad quanto na on-line, com mais de vin­te vídeos especialmente produzidos no Sul americano (navegue por eles a par­tir de veja.com.br/elvis)."Este é o mistério da democracia. Seus frutos brotam em circunstâncias inesperadas e em solos pouco cultivados pelo homem", disse o presidente Woodrow Wilson sobre Abraham Lincoln, o lenhador que chegou à Casa Branca. A despeito de seu título de realeza roquei­ra, Elvis Aaron Presley é também um desses frutos inesperados da democra­cia. Sua biografia tem aquela combina­ção de predestinação e adversidade que está na base do chamado sonho america­no. Em certa medida, seu rock'n'roll é a expressão do espírito confiante da socie­dade americana no pós-guerra: ostensi­vamente barulhento, rápido, agressivo, mas repleto da mais inocente vitalidade. Não, Elvis não criou o rock'n'roll. Mas foi sua maior estrela. Nunca estudou música, mas tinha um impressionante conhecimento intuitivo das expressões populares do Sul americano: gospel, country, blues e rhythm'n'blues, todos os gêneros que serviram de base para o rock?n'roll. Elvis não era compositor, mas colocou personalidade em tudo o que gravou. Tomem-se, por exemplo, as duas músicas que faziam parte do seu primeiro compacto na Sun Records, de Memphis. Thai's AH Righi, de Arthur Big Boy Crudup, era uma das prediletas de Elvis desde os tempos em que morava em sua cidade natal, Tupelo. Num dis­creto lance criativo, ele acrescentou à letra um expressivo "weelll" na introdu­ção. Bine Moon of Kenmcky, de Bill Monroe, recebeu um andamento acele­rado, que deixou uma canção por nature­za interiorana mais próxima das metró­poles.

HOMEM DE FAMÍLIA, OU QUASE Elvis. criança, com sem pais (acima), e com a mulher, Príscilla, e afilha, Lisa Marie, nascida em 1968: uma infância pobre, marcada pelo período que o pai passou na prisão, e depois anos de opulência. O casamento, porém, foi problemático. Elvis recusava-se afazer sexo com a mulher depois que ela teve afilha. Priscilla resolveu suas carências com um professor de caratê, e terminou saindo
Elvis falava muito diretamente com o público adolescente, e para isso foi essencial o apelo sexual não só de sua música, mas de seu rebolado no palco (celebremente censurado no programa de TV de Ed Sullivan)."A gente tocava de acordo com os movimentos do trasei­ro dele", confessou certa vez o guitarris­ta Scorty Moore, que acompanhou Elvis por mais de uma década. As meninas suspiravam pelo ídolo, e os rapazes ten­tavam imitá-lo: topete, casaco de couro e ar insolente. A febre Elvis atravessou o Atlântico, seduzindo os jovens Paul McCartney e John Lennon. "Os Beatles'não teriam existido se Elvis Presley não houvesse aparecido antes", reconhe­ceu Lennon.O Rei do Rock teve a mais hu­milde das origens. Nasceu em 8 de janeiro de 1935 em Tupelo, Mississippi. Hoje com 36000 ha­bitantes, a cidade só tem Elvis para oferecer ao visitante. Estão lá a casinha de dois cômodos on­de ele nasceu e, reconstruída nas proximidades, a igreja da Assem­bléia de Deus onde ele cantava hi­nos religiosos. Os Presley viviam um nadinha acima da linha da misé­ria. Gladys, a mãe, era costureira. Vernon, o pai, era caminhoneiro — e che­gou a passar oito meses na prisão por ter adulterado o valor de um cheque. A devo­ção religiosa da família acompanhou El­vis até o fim da vida. Ele gravou discos com cânticos, como Peace in the Valley. Peter Guralnick, provavelmen­te seu melhor biógrafo, especula que Elvis, se vivesse mais tempo, teria aos poucos se transmutado em um can­tor de gospel.O primeiro violão foi presente pelo ani­versário de 11 anos. Fora da igreja, o garoto re­zava para cantores de blues e country como Arthur Big Boy Crudup e Bill Monroe. Os Presley mudaram-se de Tupelo para Memphis em 1948, em busca de melhores condições de traba­lho. As condições culturais, essas de fato melhoraram. Elvis passou a freqüentar a Beale Street, reduto boêmio da cidade, mergulhando no blues urbano de B.B. King e Furry Lewis (a Beale Street atual tem uma estátua de Elvis. mas não é nem a sombra do que foi: tornou-se reduto de bandas cover de rock farofa. A Memphis de Elvis ainda resiste em um inferninho chamado Wild Bill"s, na periferia da ci­dade). Elvis pensava em se tornar moto­rista de caminhão, como o pai. Mudou seus planos quando entrou no estúdio da Sun Records e pagou 4 dólares para su­postamente gravar um compacto para sua mãe, com as canções My Happiness e That's When Your Heanaehe Begins. Uma secretária da Sun encantou-se com o jovem cantor e alertou seu chefe. Sam Phillips, para aquele talento potencial.

TEMPLO CAFONA Graceland (acima), a mansão de Elvis: comprada pelo cantor em 1957, ela hoje é um museu para os fãs. Foi aberta para visitação em 1982 e recebe as de 600 000 pessoas por ano. A decoração tem muito da personalidade de Elvis.

Phillips, a princípio, manteve-se cético, mas recrutou o guitarrista Scotty Moore e o baixista Bill Black para que fizessem um teste com o novato. Elvis acabou contratado e se tomou um sucesso local. Phillips venderia seu passe por modestos 35 000 dólares à gravadora RCA, na qual ele afinal ganharia o status de astro maior do rock americano (com substancial aju­da do estúdio Paramount: Elvis consoli­dou sua imagem popular em 31 filmes). O negócio já foi considerado uma man­cada indesculpável de Phillips, mas. considerando que o futuro do jovem ar­tista então era incerto, tratou-se de uma decisão razoável. Phillips saldou as dívi­das da Sun Records e continuou a inves­tir em novos talentos, como Jerry Lee Lewis. Carl Perkins e Johnny Cash. As explicações pretensamente polí­ticas para o sucesso de Elvis tendem a menosprezar seu talento e carisma, transformando-o em usurpador branco dos ritmos criados pelos negros. Contra-ditoriamente, a paixão do cantor pela música negra parece tê-lo transformado em racista. Em sua autobiografia, o bluesman B.B. King põe essa bobagem no devido lugar. "Elvis foi um grande divulgador da minha música", diz. É fa­to, porém, que a crescente politização do rock a partir dos anos 60 abalaria o estrelato de Elvis. Ele continuou vendendo discos e fazendo shows de imenso sucesso, sobretudo em Lãs Vegas. Mas já não estava na vanguarda. Os ingleses do Led Zeppelin visitaram Elvis em Graceland, sua mansão em Memphis, mas fo­ram exceção: para os artistas daquela geração, ele era ultrapassado e careta. Afinal, mostrara-se todo orgulhoso em seu uniforme militar, quando serviu no Exército, de 1958 a 1960 (aliás, foi na condição de pracinha que fez sua única viagem à Europa, servindo na Alema­nha). Em 1970, piorou sua imagem ao visitar o presidente Richard Nixon na Casa Branca.Foi proclamado embaixa­dor da juventude e aproveitou a ocasião para criticar os Beatles e os Rolling Stones por incentivarem o consumo de dro­gas (uma triste ironia, se lembrarmos que os barbitúricos foram um fator na morte de Elvis). Para além da política, censura-se a breguice flamejante de El­vis em seus shows de Lãs Vegas nesse período. São dessa fase os macacões brancos que se tornaram os favoritos en­tre os imitadores (exceção notável: Bono, do U2, preferiu o casaco de couro preto de Jailhouse Rock quando home­nageou Elvis na turnê Zôo TV)."Fui adolescente na década de 70 e conheci o Elvis gordo. Demorei a perce­ber seu talento como entenainer", diz o antropólogo Nick Spitzer, estudioso da música popular americana. Não há como negar que a veia kitsch corria fone em Elvis. Conjugando certo provincia­nismo regional à tendência universal que os novos-ricos têm para a ostenta­ção. Isso e' palpável em Graceland, hoje um roteiro de peregrinação para os fãs. Entre outras aberrações do luxo cafona, a casa tem um quarto com motivos ha­vaianos, e a sala de TV é decorada com um imenso macaco de porcelana.Não há muito brilho nos últimos anos de Elvis. A separação de Priscilla que deixou Graceland na noite de Natal de 1971 — foi barulhenta e dolo­ rosa. Elvis viveu cercado de uma turma de amigos e guarda-costas chamados de “a máfia de Memphis", tipos parasitá­rios que faziam os mais diversos servi­ços: arranjavam mulheres, pagavam contas, ameaçavam inimigos. Até hoje, em Memphis, há gente vivendo dessa singular profissão: amigo do Rei. "Quanto você pode pagar?", perguntam sempre que encontram um jornalista interessado no passado de Elvis (não, ne­nhum deles pegou carona nesta reporta­gem). Ao ser encontrado mono no ba­nheiro de Graceland, em 1977, Elvis estava, mais do que gordo, inchado - resultado de uma dieta à base de sanduí­ches de banana com manteiga de amen­doim, bacon e doses pantagruélicas de tranqüilizantes. O ídolo, o ícone — es­tes permanecem inalterados e esbeltos, com toda a exuberância sexy do melhor rock'n"roll.